The Wire
Tenho visto algumas séries. Tenho-o feito por razões como: tempo livre, pouca vontade para pensar, uma dependência de adormecer a ver imagens em movimento. "Californication" tem episódios de 25 minutos, gajas boas sem roupa (ainda que nenhuma apague este acontecimento fulcral nesta década) e consome-se como uma mini. "House" é o meu maior prazer culpado, pois é das coisas mais impressionantemente estruturadas que tenho visto; mas tem o personagem, estupendo. Experimentei também ver o "Dexter", mas não consegui ver mais do que um episódio, cheio de psicologia que é e filmado com muito estilo.
Já tinha lido os elogios a "The Wire" por gente tão desinteressante como Resnais ou Marker, mas só recentemente tomei coragem para me mandar a ela (até agora, vi as primeiras duas temporadas). É preciso coragem para ver uma série, cujos episódios têm todos 60 minutos. O leitor perguntar-se-á por esta altura se vou elogiar a série, tendo as costas quentes pelos velhos franceses e seus tacos de baseball, ou se vou contrariá-los, optando pelo descrédito completo da televisão em prol da pureza do cinema. Por isso, sinto-me meio encurralado, tal é a pouca confiança que tenho tido para escrever sobre alguma coisa.
Resnais e Marker parecem-me em forma e, por isso, vou me juntar a eles nos elogios, ainda que tentando dar um passo ao lado. Isto é, não sei se a série está assim tão cheia de inovações (sinceramente, já não sei se foi um deles que disse isso ou se é a ideia geral); ou melhor, sei que não está. Tudo o que eles dizem sobre a qualidade da narrativa, o uso da elipse, a dramaturgia, está correcto. Mas é óbvio, ou devia ser, que o entusiasmo só existe porque hoje em dia não temos pessoas como Hawks, Ford, Fuller, Chaplin, Hitchcock (este é o meu momento "História do Cinema") a filmar ao mesmo tempo. Em vez disso temos as manas (ou uma delas) a ser reavaliadas. Resumindo, a qualidade de uma série como "The Wire" é realçada porque, infelizmente, a quantidade de esterco que é feita ao mesmo tempo que ela é imensa, demasiada.
No entanto, há duas coisas que preciso de referir e elogiar em "The Wire". Uma delas tem que ver com o tempo da série e mesmo concordando com este texto do LMO (o facto de um gajo se lembrar de um post com dois anos noutro blogue não deve ser bom) penso que há um tempo próprio que pode ser trabalhado na televisão, inevitavelmente diferente do tempo no cinema, mas não merecedor de desprezo. Se eu agora falar noutra série policial, "CSI", da qual vi uns bocados (mas não sei qual a terreola "CSI", deve haver uma por estado), posso desde logo encontrar duas oposições. A primeira oposição é a da continuidade narrativa de "The Wire" contra o episódio princípio-meio-fim de "CSI". A segunda, derivada da primeira, é a justeza com que se filma o trabalho policial em "The Wire" contra os génios forenses de "CSI", quais MacGyver do século XXI (século, cujo início é marcado por este acontecimento fulcral). Ou seja, em "The Wire", filma-se o trabalho ao contrário da falsa inteligência policial. Em "The Wire" o trabalho demora tempo a ser feito, tem reveses, dão-se passos para trás que não significam forçosamente passos em frente no futuro, e, no final, todo esse trabalho moroso, difícil, não é de todo bem sucedido, ou melhor, é bem sucedido apenas em parte. Logo, a série parece-me mais próxima de uma verdade; a série não quer iludir o espectador, quer que o espectador se disponibilize para a acompanhar; a série não se evidencia a si própria - esta última ideia claramente resultante de um argumento apagado, da recusa do estilo, enfim, de uma clareza invulgar no contexto televisivo.
A outra coisa a referir, e que é importante para se sentir essa justeza, essa verdade, tem que ver também com o que se filma (calma pessoal, já falei de como se o faz acima, agora tenho que falar nisto um bocadinho também, certo?). Vou regressar às séries que tenho visto: em "Californication" filma-se um meio artístico, endinheirado, cool, pessoas bonitas, sem contracampo; em "House" filma-se um hospital asséptico, toda a gente tem seguro de saúde, pessoas bonitas, sem contracampo; no primeiro episódio de "Dexter" filmam-se pessoas bonitas em Miami, sítio bonito. Em "The Wire" a maior parte das pessoas são feias e há bastantes gordos (um insulto gratuito: falta lá o sub-director); há polícias corruptos e bêbedos; há drogados (ai, tóxicodependentes), há falta de dinheiro e o crime quase nunca é julgado (pela série, isto é); estamos em Baltimore, cidade que não interessa a ninguém, estamos nos bairros sociais de Baltimore ou nos escritórios pobres da polícia destacada, onde ainda se utilizam máquinas de escrever. Isto parece-me realmente surpreendente, mesmo que a série seja produção HBO, de ver na televisão americana, não só em relação às outras séries, mas em relação à grande maioria da produção de cinema americana (e não só, claro, mas falo da terra onde a Playboy começou).
Para mim, "The Wire" alia a qualidade dramática, um grande trabalho sobre imagens em movimento, com um olhar em volta, com um contracampo daquilo que cada vez mais exclusivamente as imagens em movimento nos oferecem. Um facto não vive sem o outro. Que "The Wire" não seja cinema pouco me importa. A maior parte dos filmes que por aí andam também não são.
Sérgio, qualquer imprecisão no texto agradece eventuais esclarecimentos da tua parte. Já agora, dedico-te o post. Bonito.
Já tinha lido os elogios a "The Wire" por gente tão desinteressante como Resnais ou Marker, mas só recentemente tomei coragem para me mandar a ela (até agora, vi as primeiras duas temporadas). É preciso coragem para ver uma série, cujos episódios têm todos 60 minutos. O leitor perguntar-se-á por esta altura se vou elogiar a série, tendo as costas quentes pelos velhos franceses e seus tacos de baseball, ou se vou contrariá-los, optando pelo descrédito completo da televisão em prol da pureza do cinema. Por isso, sinto-me meio encurralado, tal é a pouca confiança que tenho tido para escrever sobre alguma coisa.
Resnais e Marker parecem-me em forma e, por isso, vou me juntar a eles nos elogios, ainda que tentando dar um passo ao lado. Isto é, não sei se a série está assim tão cheia de inovações (sinceramente, já não sei se foi um deles que disse isso ou se é a ideia geral); ou melhor, sei que não está. Tudo o que eles dizem sobre a qualidade da narrativa, o uso da elipse, a dramaturgia, está correcto. Mas é óbvio, ou devia ser, que o entusiasmo só existe porque hoje em dia não temos pessoas como Hawks, Ford, Fuller, Chaplin, Hitchcock (este é o meu momento "História do Cinema") a filmar ao mesmo tempo. Em vez disso temos as manas (ou uma delas) a ser reavaliadas. Resumindo, a qualidade de uma série como "The Wire" é realçada porque, infelizmente, a quantidade de esterco que é feita ao mesmo tempo que ela é imensa, demasiada.
No entanto, há duas coisas que preciso de referir e elogiar em "The Wire". Uma delas tem que ver com o tempo da série e mesmo concordando com este texto do LMO (o facto de um gajo se lembrar de um post com dois anos noutro blogue não deve ser bom) penso que há um tempo próprio que pode ser trabalhado na televisão, inevitavelmente diferente do tempo no cinema, mas não merecedor de desprezo. Se eu agora falar noutra série policial, "CSI", da qual vi uns bocados (mas não sei qual a terreola "CSI", deve haver uma por estado), posso desde logo encontrar duas oposições. A primeira oposição é a da continuidade narrativa de "The Wire" contra o episódio princípio-meio-fim de "CSI". A segunda, derivada da primeira, é a justeza com que se filma o trabalho policial em "The Wire" contra os génios forenses de "CSI", quais MacGyver do século XXI (século, cujo início é marcado por este acontecimento fulcral). Ou seja, em "The Wire", filma-se o trabalho ao contrário da falsa inteligência policial. Em "The Wire" o trabalho demora tempo a ser feito, tem reveses, dão-se passos para trás que não significam forçosamente passos em frente no futuro, e, no final, todo esse trabalho moroso, difícil, não é de todo bem sucedido, ou melhor, é bem sucedido apenas em parte. Logo, a série parece-me mais próxima de uma verdade; a série não quer iludir o espectador, quer que o espectador se disponibilize para a acompanhar; a série não se evidencia a si própria - esta última ideia claramente resultante de um argumento apagado, da recusa do estilo, enfim, de uma clareza invulgar no contexto televisivo.
A outra coisa a referir, e que é importante para se sentir essa justeza, essa verdade, tem que ver também com o que se filma (calma pessoal, já falei de como se o faz acima, agora tenho que falar nisto um bocadinho também, certo?). Vou regressar às séries que tenho visto: em "Californication" filma-se um meio artístico, endinheirado, cool, pessoas bonitas, sem contracampo; em "House" filma-se um hospital asséptico, toda a gente tem seguro de saúde, pessoas bonitas, sem contracampo; no primeiro episódio de "Dexter" filmam-se pessoas bonitas em Miami, sítio bonito. Em "The Wire" a maior parte das pessoas são feias e há bastantes gordos (um insulto gratuito: falta lá o sub-director); há polícias corruptos e bêbedos; há drogados (ai, tóxicodependentes), há falta de dinheiro e o crime quase nunca é julgado (pela série, isto é); estamos em Baltimore, cidade que não interessa a ninguém, estamos nos bairros sociais de Baltimore ou nos escritórios pobres da polícia destacada, onde ainda se utilizam máquinas de escrever. Isto parece-me realmente surpreendente, mesmo que a série seja produção HBO, de ver na televisão americana, não só em relação às outras séries, mas em relação à grande maioria da produção de cinema americana (e não só, claro, mas falo da terra onde a Playboy começou).
Para mim, "The Wire" alia a qualidade dramática, um grande trabalho sobre imagens em movimento, com um olhar em volta, com um contracampo daquilo que cada vez mais exclusivamente as imagens em movimento nos oferecem. Um facto não vive sem o outro. Que "The Wire" não seja cinema pouco me importa. A maior parte dos filmes que por aí andam também não são.
Sérgio, qualquer imprecisão no texto agradece eventuais esclarecimentos da tua parte. Já agora, dedico-te o post. Bonito.
6 Comments:
caralho, anda aqui o "Langlois" das meninas nuas e, esporadicamente do porno, estoicamente a descobrir estas pérolas na net, sem se ter de comprar a revista, pra tu exibires num post sobre uma série de t.v, eheh...a sério, pareçe-me bem, mas ainda não consegui...acho que nem que o Pedro Costa elogiase eu me apetecia ver uma série...q caralho. abraço
Pois é, my bad. Tarde, deixo aqui um agradecimento especial ao "Langlois das meninas nuas", que me deu a conhecer esse acontecimento fulcral do início de século.
Continuo a concordar com LMO com a disponibilidade que ver séries requer. Tirando "Os Vingadores" e "Missão: Impossível" (séries que não exigem ser vistas em continuidade), não tenho muita pachorra para seguir histórias às pinguinhas.
O acontecimento da década seria mais ver a Cláudia Vieira ou a Vanessa Oliveira nuas. A Rita Mendes não faz nada o meu estilo.
Duas palavras: The Sopranos.
Mais palavras: longa entrevista na penúltima (será?) edição dos Cahiers du Cinéma com o David Chase.
Não é cinema, mas é como dizes... É como se fosse, vá.
Daniel, obrigado pela dedicatória. Ainda estou na Escócia, mas quando voltar gostava de retribuir o post... nomeadamente sobre a noção de estilo. Um abraço.
Só um comentário a "Não é cinema, mas é como dizes... É como se fosse, vá."
Quem vem dos estudos de cinema (e contra mim podia falar) aborda OS SOPRANOS (e outras séries) de uma forma (como se fosse filmes) que ignora por completo o feito da obra como SÉRIE. São +/- 80 horas de ficção em episódios que mantêm a mesma qualidade e sobretudo o mesmo tom e sentido dramático. Um feito em nada parecido com a construção narrativa dum filme. O mesmo podia ser dito de THE WIRE.
http://ana-de-amsterdam.blogspot.com/2009/07/triste-singularidade-de-uma-rapariga.html
txiii...que barraco..grande ofensa!!
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