Friday, May 25, 2007

Anti-clubite

«Há muito tempo que um filme de Spielberg não fazia correr tanta tinta. Alguma dessa tinta, convenhamos, é razão para sorrisos divertidos. Por exemplo: qual é uma das censuras mais comuns ao cinema americano em geral, e a Spielberg em particular? O maniqueísmo, o desenho de uma linha (demasiado) clara entre o "Bem" e o "Mal". E qual é, pelo que se tem lido, a censura mais comum a "Munique"? Exacto: a diluição do maniqueísmo, a ausência de fronteiras claras entre o "Bem" e o "Mal". Dá, de facto, motivos para sorrisos. Não que estas censuras tenham inteira razão de ser - nem o cinema americano é sempre maniqueísta, nem "Munique" se esquece de pôr as questões morais nos devidos pratos da balança. Aliás, pelo que se tinha lido nalguma imprensa internacional mais inflamada quase que esperávamos descobrir em "Munique" um panfleto anti-israelita e pró-palestiniano, coisa que, vinda de onde "Munique" vem, seria deveras surpreendente. Obviamente, o filme não é nada disso. Aliás, nem isso nem o seu contrário.

Atreve-se, é certo, a discutir o "contra-terrorismo" - lemos algures, em tom reprovador, que em "Munique" Spielberg se abstém de discutir o terrorismo para se interessar só pelo contra-terrorismo. Mas por que não? Trinta e tal anos depois de Munique 1972 e de tudo o que se passou entretanto, por que não discutir o contra-terrorismo? Nas raras declarações públicas referentes a "Munique", Spielberg (que como é sabido se furtou a uma campanha de promoção tradicional) isolou esse tema, falando da "lógica da retaliação".

O filme é complexo e com dificuldade se deixa reduzir a só isto ou só aquilo, e o que um realizador diz que o seu filme diz nem sempre é o que o seu filme de facto diz, mas para já fiquemos assim: um filme que questiona o contra-terrorismo. Já vimos "programas" mais chocantes.

"Munique", por esta altura toda a gente sabe, parte dos acontecimentos dos Jogos Olímpicos de 1972, quando a "Setembro Negro", organização terrorista palestiniana, raptou diversos elementos da comitiva israelita. No decurso de uma desastrada operação de resgate aconteceu um banho de sangue - todos os reféns acabaram mortos, assim com a maior parte dos terroristas. Spielberg começa por aqui, como numa "reconstituição", mas não nos dá tudo duma vez. Aos soluços, durante o filme, voltaremos a Munique 1972 e ao seu sangrento desenlace. E o que começa como "reconstituição" deixa de o ser - já nem é como "flash back" que Munique 1972 irrompe pelo filme, antes como "flash" (sem o "back"), uma "presença" (e não um "passado"), uma imagem impressa na memória, em mais do que uma ocasião evocada como "imagem mental". Por exemplo na mais estranha sequência do filme: já perto do fim, o protagonista (Eric Bana) faz amor com a mulher, e como uma alucinação, surgem em montagem paralela imagens da falhada operação de resgate (é o tipo de sequência, curiosamente "feia", que nunca imaginámos Spielberg a fazer). Transformando Munique 1972 numa "persistência mental", Spielberg actua como se estivesse a fazer uma espécie de "psicanálise do mundo moderno", pelo menos no que ao terrorismo diz respeito: eis aqui um equivalente para a "cena primitiva", momento inicial, decisivo, nascimento de uma assombração ainda por resolver. Historicamente não estará muito incorrecto; simbolicamente, como o curso do filme e o seu fabuloso último plano (de uma lógica terrível) provarão, faz todo o sentido.

O foro psicológico tem, de resto, uma importância especial em "Munique", como se a sua verdadeira história fosse sobretudo a história de um percurso psicológico - e de uma crescentemente céptica visão do mundo, em oposição à certeza "visceral" do princípio. É um dos aspectos que também levanta celeuma: estará Spielberg a equiparar os "terroristas" e os "contra-terroristas", a estabelecer uma "equivalência"? Não o podemos dizer que esteja, pelo menos genericamente - mas se estiver isso também só ofende "virgens radicais" e pouco versadas, já que a identificação e emparelhamento de opostos, perseguidores e perseguidos, caçadores e caçados, é uma coisa "clássica" dos livros e dos filmes (lembrem-se em especial os filmes anti-nazis de Lang, "Hangmen Also Die" ou "Man Hunt / Feras Humanas", onde era preciso ser tão ou mais selvagem do que o inimigo).

Independentemente disso, a questão parece, de qualquer forma, individualizada e relacionada com o protagonista. É certo que no grupo de operacionais (belo "casting" heteróclito: Eric Bana, Daniel Craig, Ciaran Hinds, Hanns Zischler, Mathieu Kassovitz) formado pelo Mossad para dar caça aos (supostos) envolvidos na preparação de Munique 1972 se parecem representar diversas sensibilidades (não faltando, na personagem de Craig, com os seus discursos sobre o "sangue judeu", um potencial sionista), mas nem por isso alguma coisa autoriza a que se olhe para o grupo como uma "representação" de Israel, e muito menos a que a tal se reduza a personagem principal, legitimando a transferência das suas dúvidas, cepticismos (ou culpa). É um processo psicológico e individual, gradual e ditado por um modo de acção assente na lógica de emboscada, no jogo de gato e de rato, numa espécie de experiência da "clandestinidade". Nesse sentido o plano mais perverso acontece na sequência de Chipre, quando Spielberg enquadra Bana à varanda do hotel no mesmo ângulo em que se vê um terrorista, também à varanda, numa das mais célebres imagens de Munique 1972 (e de que o plano não é inocente nem fruto do acaso tem-se depois a prova, quando a câmara recua, abrindo o enquadramento e deixando ver o nome do hotel: "Olympic Hotel", em perfeito "raccord" mental). E este é, no fundo, o motor narrativo de "Munique" - um processo de cepticismo, de perda de identidade, de turvamento do maniqueísmo, de desenraizamento (o protagonista acaba num semi-exílio em Brooklyn), mas um processo radicalmente individual, nem sequer necessariamente ecoado pelo mundo exterior.

Processo triste, claro. "Munique" é um filme muito triste, ou sobretudo desencantado. Ninguém se transforma numa "fera humana" e fica igual ao que era. A maneira como essa tristeza se instala no filme é das coisas mais fascinantes que Spielberg aqui consegue.

As duas sequências com a assassina holandesa, em especial a segunda, momento de uma vingança particular, filmada com frieza e crueldade rumo a um plano de acabada desolação moral (o corpo dela na cadeira, que Zischler insiste em deixar destapado). Não é por acaso, é com essas sequências que começa a desintegração do grupo - o momento em que todos percebem que passaram a ser simultaneamente gato e rato.

Mas é uma tristeza que Spielberg leva mais longe. Podíamos defender que "Munique" é menos um filme sobre a questão israelo-palestiniana (isso não parece, de todo) ou sobre a reacção de Israel ao terrorismo palestiniano do que um filme sobre a América pós-11 de Setembro e sobre a sua reacção aos atentados. Não seria nada de estranhar, Spielberg só tem feito filmes "pós-11 de Setembro" ("Terminal de Aeroporto", "A Guerra dos Mundos"). E em certa medida é como se ele aqui filmasse o "primeiro 11 de Setembro" e encenasse, mais do que um paralelismo, uma especularidade. E sobretudo, de novo, uma "persistência": no plano final (não revelaremos, mas tão lógico e previsível como genial) o percurso consuma-se, faz-se quase um "flash forward" ou um "raccord" ou entre os dois Setembros. Não há tristeza maior - trinta e tal anos depois, estamos aqui, assim. O "raccord" e o desencanto subjacente fazem-nos pensar, ironia das ironias, em Godard para quem Spielberg é quase um anátema, e que é o seu maior "perseguidor". O gato e o rato encontram-se sempre?

Não é a única surpresa num filme construído como um "thriller" frio e violento, melancolicamente "paisagístico" (Roma, Atenas, Paris, Londres, Nova Iorque: "Munique" é um belo filme "global"). De entre tudo aquilo que ficou por referir, mencionemos apenas aquela peculiar família francesa cujo patriarca é Michael Lonsdale, o único actor do mundo que se pode gabar de ter sido actor de Marguerite Duras e actor de Steven Spielberg.»


Luís Miguel Oliveira, in Suplemento Y, Público, 02-02-2006


Porque o Luís Miguel Oliveira, que gosto muito de ler, parece ter legitimidade entre a cinefilía mais intelectual e mostra como é possível gostar de Godard e de Spielberg. É mais fácil do que eu dizê-lo 1000 vezes.


Do Público não quero saber, mas espero que ele não leve a mal a transcrição.

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