Monday, April 02, 2007

Televisão: "House" e o políticamente incorrecto

Idéia consensual: a televisão como mal maior das imagens em movimento. Concordo, mas, como sempre, nada de fundamentalismos. E pode mesmo sentir-se uma esperança. Esperança essa que sinto em alguns objectos vindo da televisão norte-americana. Tentarei, em breve, falar de um programa que considero fundamental - "The Daily Show" -; hoje, fico-me pelo seriado de ficção, centrando-me em "House".

Não sou um conhecedor profundo desta nova vaga de seriado televisivo norte-americano, sendo mesmo "House", por simples acaso, a única série que, neste momento consigo acompanhar de forma irregular. Acompanhei "The Sopranos, em tempos, e mais recentemente "Six Feet Under", a melhor coisa que já vi em televisão. "Six Feet Under", mesmo obedecendo a uma estrutura televisiva necessária, conseguia momentos de pura arte cinematográfica (dêem-me na cabeça à vontade por esta frase, mas as elipses, os silêncios, os grandes planos que por lá passavam não foram, decerto, aprendidos com as palhaçadas de Fonzie em "Happy Days"). Quem melhor conhece, fala ainda de "Lost", de "Nip/Tuck", de "Carnivale", entre outros, como capazes de ultrapassar limites, que a maioria do cinema americano contemporâneo já não consegue (a propósito, lembro-me de um belo texto do Vasco Câmara, há tempos, sobre "Nip/Tuck", mas já não tenho acesso a ele).

"House", então. E vejamos do que a série é capaz num simples episódio, aquele que visionei ontem, "Needle in a Haystack", da série 3:

i) Uma nova médica, paraplégica, chega ao hospital e, devido à sua condição, ficará a ocupar o parque de estacionamento de House, que para quem não sabe tem um problema gravíssimo na perna, andando, inclusivé, com a ajuda de uma bengala, ocorrendo ainda a drogas para não sentir dores (tema forte da série 2, creio). Daqui reflecte-se as benesses dadas a duas condições diferentes: a sociedade cataloga a pessoa na cadeira de rodas como sofredora de lesão maior (concordo), mas esquece-se que, em tempo de neve por exemplo, a pessoa de bengala tem muito mais dificuldades em se deslocar. House, numa das apostas já habituais com a sua chefe, passa uma semana numa cadeira de rodas para provar que é mais fácil, ou seja, utiliza a cadeira de rodas sem precisar, utilizando-a mesmo de forma gozona para marcar a sua posição. Aquilo que seria imediatamente condenável, sofre em "House" uma reflexão mais profunda para se perceber que nem sempre é óbvio aquilo que o parece ser.

ii) O paciente deste episódio é um adolescente de etnia cigana. A sua família, nomeadamente os seus pais, são contra as instituições (hospitais e escolas, para me manter no que é essencial), seguindo um caminho nómada. Aquilo a que estamos habituados na televisão é que se tenha um olhar que dê espaço às minorias, um olhar que condene a sociedade que não aceite a minoria, um olhar que, no pior dos casos, é de compaixão. Neste episódio segue-se um outro caminho. O olhar nunca é xenófobo (a única xenofobia vem dos pais em relação à namorada do filho) mas sabe questionar os problemas inerentes à condição nómada dos ciganos. O discurso é violento quando se explica que a não autorização dos pais a um tratamento experimental poderá levar à morte do paciente. Por último, a descoberta da origem dos problemas do paciente: um palito engolido que perfurara vários orgãos ao paciente. Um hábito "tradicional" (muitas aspas) pouco higiénico que passará estranhamente de pais para filhos e que é alvo de um olhar que mostra as suas consequências.

iii) "House" sabe ainda questionar os próprios heróis da série. Neste episódio, como já disse, há a hipótese de um tratamento experimental, que não é autorizado pelos pais. O tratamento segue porque um dos médicos arrisca a sua carteira profissional ao convencer o paciente a segui-lo. O tratamento não é levado a cabo porque outras descobertas são feitas - a ser continuado, o paciente morreria. Ainda uma nota para a forma como House, personagem, distrai os pais do paciente para que aquilo contado acima aconteça: perto dos pais do paciente, ele diz a um colega "don't you gip me!", "gip" derivado de "gipsy" (cigano), remetendo para um óbvio insulto racial.

O trunfo de "House" é ser políticamente incorrecto. Nunca o é, porém, como fim em si. O políticamente correcto é utilizado para tentar compreender o mundo em que vivemos. Em tempos em que cada vez mais a democracia, e os seus contínuos apelos e resoluções buscando uma igualdade social impossível, opera um efeito de normalização terrivelmente perigoso, é preciso que a televisão, medium muito eficaz na transmissão de mensagens, boas e más, resista ao que está imposto para parecer bem e tente lutar contra a normalização cada vez mais vigente.

É bom que haja séries como "House". Há coisas em "House" que não vejo em muito cinema americano contemporâneo. Ele que venha beber algo à boa televisão, eu agradeço.

4 Comments:

Blogger gonn1000 said...

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8:31 PM  
Blogger gonn1000 said...

Assino por baixo, embora até ache "House" a série menos interessante de entre as que referiste.

"É bom que haja séries como "House". Há coisas em "House" que não vejo em muito cinema americano contemporâneo. Ele que venha beber algo à boa televisão, eu agradeço."

Americano, ou francês, ou português, ou italiano, ou...

8:31 PM  
Blogger Nuno said...

""Six Feet Under", mesmo obedecendo a uma estrutura televisiva necessária, conseguia momentos de pura arte cinematográfica."

Subscrevo!

Agora o "House", nunca vi.

10:15 PM  
Blogger Francisco Mendes said...

Esse teu vislumbre cinematográfico em "Six Feet Under" é uma visão bem real. Aliás, o criador Alan Ball é o argumentista do brilhante filme de Sam Mendes, "American Beauty".

8:35 AM  

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