Isto não era para ser uma trilogia de textos sobre o "War of the Worlds". Começou porque o primeiro é um dos textos de que mais gosto escritos pela Kathleen Gomes. Com o magnífico texto do Augusto M. Seabra ao lado, não resisti a postá-lo. E, então, com o texto do Vasco Câmara também disponível na página do Público, cá vai.
Porque o Spielberg, muitas vezes, é só visto por aquilo que significa no cinema comercial sem se olhar a fundo o seu cinema. E porque este filme é um dos melhores casos para o confirmar.
"Se as manobras da chamada Nova Hollywood - nos anos 70 - tiveram como estratégia de ataque o vasculhar do sótão da Velha Hollywood, recuperando géneros e reciclando-os à medida das (novas) apetências do público, poucos deles (desses "movie brats" e de outros autores dessa década que ainda sobrevivem: Coppola, Scorsese, Bogdanovich, DePalma...) mantiveram essa pulsão de ir direito à jugular do espectador com a revitalização dos códigos do que estava moribundo falando, com o espectáculo, das tensões do seu tempo.
Alguns a essa matriz regressam, como se necessitassem de encontrar uma parte perdida de si próprios (se quisermos andar para trás, chega-se à infância destes "fedelhos do cinema"...). Isto para dizer que não é de admirar se, nas primeiras sequências de "Guerra dos Mundos" - o mundo operário de New Jersey, onde conhecemos Ray (Tom Cruise), personagem que, dizia o argumentista David Koepp numa entrevista, "é como um daqueles tipos das canções de Springsteen: casou-se demasiado jovem, tem um emprego que odeia e ficou enterrado nesse limbo que o faz infeliz" -, formos assaltados pela estranheza: os "blockbusters" não têm esta rugosidade, pelo menos os "blockbusters" de hoje, os planos não se sucedem com esta implacabilidade que respira a tensão de uma personagem (e os "blockbusters" também não costumam interessar-se pelo meio operário).
Essa estranheza pode ser, afinal, a estranheza de um reconhecimento: isto era assim há décadas atrás e era assim nos inícios de Spielberg, por exemplo "Duel- Um Assassino pelas Costas", por exemplo "Tubarão". "Guerra dos Mundos" é, se não um regresso, pelo menos um contacto mais próximo de um realizador com o que foi decisivo para a sua formação - é um percurso evolutivo que o separa, por exemplo, de um contemporâneo seu, Martin Scorsese, que, pelo contrário, tem andado afastado (mas vamos ver o que ainda aí vem...) dessa espécie de pacto de fidelidade com as suas raízes e métodos.
Antes de fazer filmes, tudo para Spielberg terá começado na TV, no subúrbio, a ver Capra, DeMille e Ford, é claro, mas também ficção científica, filmes de Jack Arnold ("The Incredible Shrinking Man", "It Came from Outer Space", "The Creature from the Black Lagoon") ou Hawks ("The Thing"). Ou, mais decisivo, a série "Twilight Zone". O seu primeiro filme, registo amador de um adolescente, chamava-se "Starlight" e já olhava espantado para o que vinha do céu.
Para quem cresceu nos anos 50/60, o espectáculo da paranóia era o prato do dia, e talvez seja por isso que, mais do que "A Guerra dos Mundos", livro de H. G. Wells (que só leu em 1967), Spielberg tenha sido sensível às ressonâncias que lhe chegaram de "A Guerra dos Mundos", "espectáculo" que Orson Welles montou na rádio em 1938, com o seu Mercury Theater (com sede em New Jersey, aliás...), adaptando a novela de Wells e pondo a América a fugir por causa de uma invasão extraterrestre (há uma década, Steven comprou o guião original desse programa, escrito por Howard Koch, que escapara à rusga policial que se seguiu à emissão, e pô-lo orgulhoso em exposição no escritório).
Mais uma: não é por acaso que Spielberg se deixou seduzir por um projecto como "1941-Ano Louco em Hollywood" (1979), um dos seus filmes mais iconoclastas e mal amados, projecto inicialmente chamado "The Night the Japs Attacked" e onde ele encontrou ressonâncias com a "Guerra dos Mundos" de Orson.
Talvez seja por isso, finalmente, que em "A Guerra dos Mundos" Spielberg surja como alguns dos artesãos do passado - podemos não ir tão longe e parar no seu próprio passado, nos anos 70 -, capazes de ler os sinais do tempo e articulá-los a um "mood" contemporâneo, não recuando perante o "exploitation", investindo na concisão, que é um programa de economia de meios mas também programa estético e de olhar sobre o mundo (72 dias de rodagem, pouco para um filme desta dimensão e mesmo para um realizador rápido como Spielberg). E mostrando que o "cliché" do "filme à Spielberg" é, também por culpa dele, redutor, esquecendo coisas violentas, sobre a frustração do "american dream" ou a paranóia urbana, que já filmou.
É assim: Ray/Tom Cruise um daqueles homens em perda no cinema de Spielberg (versão socialmente delapidada do homem-criança interpretado por Richard Dreyfuss em "Encontros Imediatos do Terceiro Grau"), divorciado, vê-se a braços com uma tarefa de que sempre se alheou: proteger os filhos (Dakota Fanning e Justin Chatwin). É só isto, viagem de fuga, com invasão extraterrestre por trás. Sempre por trás, o que chega a ser anacrónico, apesar dos efeitos especiais - não é "O Dia da Independência", nem "O Dia Depois de Amanhã".
A descrição do deprimido mundo de Ray, com os laços familiares inertes, é tão agreste como o olhar sobre a cidade balnear de "Tubarão". E Ray é um exemplo de masculinidade derrotada, socialmente vencida, como a personagem do alegórico "Duel", filme que, juraríamos, Spielberg cita num dos "travellings" iniciais em que o ecrã é atravessado por camiões.
Nunca, quase nunca (porque há uma nódoa: a sequência com a personagem de Tim Robbins, na cabana, onde Spielberg aí sim, surge retórico e mole), se abandona este grupo em fuga e em construção, estas personagens que não encontraram, ou já perderam, os seus papéis: a relação entre pai e filha (Cruise e Dakota Fanning) é uma relação entre um homem e uma mulher - Dakota, actriz-criança-adulta, variação da Drew Barrymore de "E.T.", é espantosa -, com tons de aventura burlesca, como num filme de "Indiana Jones"; não deve ter sido por acaso que Spielberg deu a Dakota cenas com gritos de sustos como as que deu a Kate Capshaw, hoje a senhora Spielberg, em "Indiana Jones e o Tempo Perdido"...
E nunca, nem no final, só aparentemente "happy end" conciliador, Spielberg trai a crispação afectiva que aqui circula. Ray/Cruise continua sozinho, como uma personagem de "western" amargurado.
O terror vem do céu, numa espécie de negativo, como tem sido referido, de "ET" e de "Encontros Imediatos...", filme onde estava a "imagem central", assim Spielberg a definiu, do seu cinema, aquele plano do miúdo inundado pela luz do maravilhoso e do terrífico antes de ser raptado pelos "aliens" - juraríamos que Spielberg também o cita, e distorce, naquele plano de Dakota Fanning inundada pela luz, antes de ser raptada. Mas o que mete medo é a explícita, e já polémica, fantasmagoria convocada: roupa a cair do alto (os corpos das vítimas desaparecerem, fulminados pelos "aliens), a paisagem coberta com um manto de sangue (os "aliens" sugam e depois espalham...), a poeira branca, dos destroços, no rosto dos sobrevivente... está-se a ver onde é que estamos, no 11 de Setembro. É assim, reformulando imagens de marca, variando o seu potencial metafórico, que Steven Spielberg põe de fora as garras que afiou durante a sua educação no solitário subúrbio como espectador televisivo de "exploitation movies" e outras bizarrias."
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Público (05-07-12)