Terça-feira passada, desloquei-me ao São Jorge para descobrir dois documentários de João Pedro Rodrigues que não sabia existirem (também vi o "Mudar de Vida", de Paulo Rocha, pela primeira vez, mas isso é outra fruta): "Esta é a Minha Casa" (1997) e "Viagem à Expo" (1999). Menos do que a qualidade individual dos filmes, importa pensar nos dois filmes em conjunto e na enorme possibilidade de comunicação entre si. Daí, com certeza, a iniciativa de programar ambos para este ciclo cujo tema foi a emigração.
Uma breve tentativa de sinopse para os dois filmes: no primeiro acompanhamos uma família emigrada em França a regressar a Portugal (Trás-os-Montes), numa daquelas viagens sem parar, saltando o filme, por vezes, para o quotidiano da família na sua vivência em Paris; no segundo acompanhamos a mesma família numa viagem a Lisboa, menos como emigrantes regressados, mais como turistas descobrindo uma cidade pela primeira vez.
No entanto, se o pensamento de programação foi esse, logo se perdeu na confusão do debate que se seguiu à projecção. O debate contava com Rodrigues e com Filomena Silvano, antropóloga, professora na UNL e conselheira do cineasta na concretização destes projectos. Com o debate a centrar-se no tema, foi fácil ser Silvano a dominar a conversa. Pareceram-me equívocos graves os dois seguintes pontos:
- a vontade de pensar na viagem do primeiro filme (Paris-Trás-os-Montes, com brevíssimas paragens, sem descanso praticamente, como é alíás costume nesta situação) como uma questão de levar um corpo aos seus limites, partindo daí para a associação do filme à futura obra do realizador ("O Fantasma" e "Odete"). Ora, mesmo que a viagem da equipa de filmagem (Rodrigues, Silvano e mais duas ou três pessoas) se tenha reflectido dessa forma por falta de hábito, a forma como se faz essa viagem não advém, de forma alguma, dessa situação.
- uma demasiado longa discussão centrada na questão sobre se o segundo filme poderia ser considerado um filme sobre emigração. De um lado, Silvano dizia que sim, do outro lado, outra antropóloga cujo nome não sei, dizia que não. Atente-se aqui que a segunda antropóloga não tinha visto o primeiro filme.
Neste segundo ponto está visível o fracasso da rara possibilidade de haver um debate sobre cinema. Aliás, neste caso, seria até mais sobre programação cinematográfica. Isto porque "Viagem à Expo" é
um filme visto isoladamente e
outro se visto em conjunto com "Esta é a Minha Casa". Como se emparelhar os dois filmes causasse no primeiro uma
mise-en-abyme que possibilita a existência do segundo. Nesse sentido, é como se o visionamento em conjunto tornasse claras diferentes camadas de pensamento. E seria a partir daqui que eventualmente se poderia partir para o tema da emigração. Mas atenção: partir sempre do cinema quando se utiliza o cinema para demonstrar. E é pena que nem Rodrigues tivesse tido vontade de contrariar o discurso vigente.
Tudo o resto são parvoíces como me parece ser o primeiro equívoco. Não posso deixar de referir uma brilhante participação do público, em que um senhor, em tom superior como não poderia deixar de ser vindo de um velho reformado, com certeza "culto", a passear-se à tarde pelo São Jorge, que referia as mentiras das vivências no estrangeiro que os emigrantes contavam na aldeia de sua mãe, comentando que essas pessoas não iam, por exemplo, a museus (?!?!).
Tendo em conta a quantidade de parvoíce, quase apetece ceder à impossibilidade de existência de debates sobre cinema e pedir que, pelo menos, os intervenientes tenham conhecimento do tema para evitar o embaraço.